‘Aprofundando o entendimento sobre a natureza do pensamento antivacina’

Filipe Freitas
8 min readAug 10, 2021

Depois de publicar um texto de repúdio ao movimento antivacina, investi bastante energia em diálogos sobre o tema e o texto que se segue são algumas reflexões que emergiram ao longo dessas trocas.

Dentre os interlocutores antivacinas, alguns poucos já estudaram mais a fundo o tema e, em geral, defendem sua liberdade individual e não apresentam qualquer solução alternativa no âmbito social; outros basicamente enumeram itens de uma vil cartilha antivacina que circula, com adaptações, entre neofascistas, anarquistas e naturalistas, principalmente.

No caso de dialogar com pessoas que defendem a rejeição às vacinas sem terem ao menos se dedicado a entender o assunto, me vem à mente o conselho de Mark Twain para jamais discutir com um ignorante, pois ele geralmente arrasta o interlocutor para a ignorância e o vence pela experiência.

É muito cansativo dialogar com um interlocutor cuja estratégia é questionar os dados oficiais, os testes, os periódicos, as organizações médicas, o conhecimento produzido, questionar tudo, tudo, tudo, não deixar passar nada que esteja estabelecido, bem no estilo de combate de narrativas lecionado por Olavo de Carvalho em seus livros e cursos.

E assim vão navegando pelas discussões, ignorando evidências, adestrados por uma mentalidade contestadora ‘per si’, reproduzindo uma cartilha que reúne narrativas organizadas e pautadas em torno de informações falsas e/ou enganosas.

Apoiando-se nos numerosos replicadores que repetem mentiras exaustivamente até que elas ganhem um ar de verdade, estes interlocutores são capazes de sustentar a incerteza em pé, aproveitando o paradoxo de a ciência não consumar verdades absolutas e incentivar a dúvida e a refutação.

O questionamento generalizado é, pois, a infantaria que visa destruir as evidências e os fatos verificáveis, para, em seguida, abrir caminho para a artilharia bombardear a discussão com um arsenal de hipóteses sem lastro no método científico, em geral, propagadas por uma minoria de formadores de opinião, alguns deles pesquisadores de comportamento bastante questionável, ao trocarem o rigor empírico por informações ‘canalizadas’ por seus próprios gênios inventivos.

Algumas personalidades relevantes para o movimento antivacina se destacaram e foram eventualmente premiadas em outros campos do conhecimento, e posteriormente vieram especular em áreas de conhecimento nas quais eles não são especialistas, colocando sua autoridade a serviço do movimento.

Decerto percebem que suas ideias ‘outsiders’ atraem a atenção de toda a sorte de contestadores e isso lhes traz fama, seguidores e, por que não, dinheiro. O fato é que cada um serve ao senhor que lhe convém. Se a pessoa argumenta em favor de suas crenças, para que checar a veracidade das informações, não é mesmo?

Chamo a atenção para que a condição de pesquisador ‘outsider’ não seja, a priori, desqualificada. A ciência, em grande medida, evolui a partir de inovações que, muitas vezes, advêm de pesquisadores ‘outsiders’. Estes são imprescindíveis para o avanço do conhecimento científico ao provocarem saltos cognitivos.

Há, contudo, distinções importantes entre os chamados ‘outsiders’, em especial no que tange a adesão ao próprio pensamento científico. O que fazem os ‘outsiders’ comprometidos com os princípios, com o método e com a comunidade científica? Estes geralmente não estão nas redes sociais, estão, na real, trabalhando silenciosamente, buscando sustentar empiricamente suas hipóteses.

Só depois de alcançar uma base de conhecimento empírico capaz de confirmá-las, eles ousam refutar o conhecimento estabelecido, publicando seus resultados em periódicos confiáveis, gerando novas compreensões que fazem evoluir a percepção racional sobre a realidade e, muitas vezes, transformando abruptamente aquilo que anteriormente era considerado verdadeiro. Estes pesquisadores estão em todas as áreas de conhecimento e a eles devemos nosso reconhecimento.

Ao mesmo tempo, existe uma minoria ‘outsider’ formada por pesquisadores oportunistas que, desavergonhadamente, propagam informação sem qualquer base empírica, se arvorando nas redes sociais, usando de ferramentas de comunicação para sensibilizar a parcela da população mais ignorante e mais suscetível a ser enganada através de raciocínios frágeis e sem embasamento, arrebanhando muitos seguidores que os sustentam como ‘notáveis’.

Assim como no texto anterior, quero reforçar que, sem dúvida, há importantes questionamentos a serem feitos em relação às vacinas, assim como em qualquer campo do conhecimento pautado pela ciência. As vacinas apresentam aspectos que podem e devem ser melhorados e não estão imunes às dúvidas e refutações.

É, sem dúvida, importante levantar também a questão do poder econômico gerando comportamentos doentios no âmbito da indústria farmacêutica, cuja missão é, paradoxalmente, gerar saúde.

É possível também abordar a questão em um viés biossocial de longo prazo e questionar o impacto das vacinas no sistema imunológico da espécie humana como um todo.

Tudo isso é válido, mas estas argumentações devem ser trazidas em seu devido lugar, amparadas por dados empíricos confiáveis, com responsabilidade, e não de forma oportunista, muitas vezes com um viés político-ideológico, amparando-se em hipóteses conspiratórias e obscurecidas por interesses escusos subjacentes de uma minoria barulhenta que produz desinformação e se alimenta de confusão social.

O fato é que as vacinas já salvaram muitos milhões ou mesmo bilhões de vidas e minimizaram o sofrimento das populações de forma inequívoca ao longo das últimas décadas. Um paradoxo dramático é que, com o sucesso dos programas de imunização desde meados do século XX, o controle epidemiológico de doenças preveníveis por vacinas fez com que os benefícios da imunização se tornassem menos óbvios, pois as gerações vão se sucedendo e os mais novos deixam de ter a experiência direta com surtos e outras ocorrências mórbidas.

Uma vez que a vacinação diminui a relevância e gravidade das doenças infectocontagiosas, os indivíduos deixam de ver a prevenção contínua com o mesmo senso de urgência de antes e isso abriu espaço para o pensamento e atitudes antivacinas que vêm se reproduzindo desde a década de 1990.

No caso da atual pandemia, especificamente, além de todo o arsenal de argumentos falaciosos coletados ao longo das últimas décadas, o movimento antivacina se apoia na afirmação de que as vacinas para a covid são experimentais, não foram testadas e não geram imunidade. Nada disso é verdade!

É certo que, em um estado de emergência sanitária causada por uma pandemia global, houve uma aceleração do processo de liberação de uso dos imunizantes, mas este uso está pautado em estudos abrangentes de segurança e eficácia, com dezenas ou centenas de milhares de voluntários.

Nestes estudos, os pesquisadores conseguem comparar os resultados do grupo que efetivamente tomou a vacina com os do grupo que tomou um placebo, verificando a proporção dos que foram contaminados em ambos os grupos e identificando ocorrências colaterais. É assim que as ciências da medicina e da farmácia desenvolvem novos medicamentos e vacinas.

Em relação às vacinas da covid, estamos falando de dados robustos, seja como resultados dos testes clínicos já publicados, seja como monitoramento dos dados acerca de número de casos, hospitalizações e mortes pela doença.

O fato é que a vacinação está se mostrando eficaz para conter a pandemia e isso vem trazendo inesperadamente uma problemática embutida. Afinal, tudo indica que os agentes do pensamento antivacina, que resistiram até agora, seguirão resistindo aos fatos e evidências e aprofundarão as narrativas de resposta, levantando dúvidas, desqualificando dados e pareceres oficiais e sustentando visões distorcidas, canalizadas pelos ‘notáveis’ e propagandeadas por grupos delinquentes, centralizadores de desinformação, assentados na deep web e em uma grande rede capilarizada de grupos de whatsapp e telegram.

Ainda que os próprios agentes antivacina se beneficiem do abrandamento da pandemia, tudo indica que reforçarão a narrativa de que não foram as vacinas que diminuíram os danos da doença, pelo contrário, na visão deles, o que vale é a imunização de rebanho, a vacina prejudica e produz novas variantes, como um dos ‘notáveis’ começou a difundir há algumas semanas, sem, contudo, apresentar qualquer resultado empírico.

Outro paradoxo dramático que se verifica no âmbito da epidemiologia é quando, diante de uma situação de epidemia, faz-se imperativo recomendar uma série de medidas impopulares, muitas vezes restritivas em nível individual e coletivo, para conter os fatores de risco, a transmissão dos agentes etiológicos e controlar situações nas quais as pessoas se transformam em perigosos vetores de propagação de doenças muitas vezes letais.

Em um misto de ignorância e egoísmo, parte da população usualmente resiste a essas medidas em nome de sua liberdade individual, questionando tudo em argumentações geralmente ignorantes e afrontando toda a sociedade com suas atitudes egocêntricas. Um exemplo disso são as pessoas que ficam sem máscara em ambientes públicos durante uma epidemia respiratória, situação que demonstra um completo descolamento da realidade, uma limitação cognitiva muito severa de não se perceberem como transmissores de doença e colocarem as pessoas próximas em risco real de contaminação e adoecimento.

Ainda assim, apesar de sempre haver essa parcela dissonante, as medidas epidemiológicas recomendadas, em geral, costumam gerar resultados e conseguem diminuir a transmissão da doença. O paradoxo é que, ao serem capazes de diminuir o impacto de uma epidemia, as próprias medidas restritivas de controle epidemiológico oportunizam àqueles que as combateram usar seus efeitos benéficos para sustentar suas próprias crenças: “Aí, tá vendo? Eu avisei que vocês estavam exagerando, não precisava de tudo isso!” Isso nada mais é que um pensamento insano e mórbido, assentado na mais profunda ignorância sobre o tema.

Registros historiográficos mostram que exércitos negacionistas barulhentos sempre surgiram em tempos de epidemia. Usualmente uma minoria, este exército não é assim tão minoria no Brasil assolado pela covid-19, pois o próprio presidente da república alimenta a ignorância com declarações débeis, paranóicas, irracionais, desqualificando e desdenhando o conhecimento epidemiológico e, pior, agindo e se comportando de maneira oposta ao que é aconselhado pela ciência.

Sua intenção parece ser questionar e afrontar o que está estabelecido e literalmente arrebanhar a parcela mais ignorante da população como soldados de seu exército de contestação, criando uma legião de seguidores fanáticos para sustentarem suas crenças e seu projeto político.

Nem todos os indivíduos antivacinas pertencem ao exército de extrema direita do presidente, ainda que suas ações apoiem este exército de forma inconsciente. Em geral são anarquistas inconformados com os limites impostos às suas liberdades individuais, ou naturalistas com o foco em saúde natural, pautada no fortalecimento do sistema imunológico, bons hábitos, boa comida orgânica, etc.

O que estes últimos não percebem é que, contraditoriamente, defendendo a saúde natural, eles se entopem de informações tóxicas baratas, grosseiras e de má qualidade em suas mentes, oriundas de sites que eles não sabem nada a respeito (algo como comprar mantimentos em uma loja duvidosa que usa a pior cadeia de suprimentos agrícolas industriais possível).

Neofascistas, anarquistas e naturalistas antivacinas compõem, respectivamente, populosas comunidades, cujos integrantes criam espaços sociais acolhedores para si mesmos, se apoiando e se adestrando mutuamente através de uma cartilha de crenças, gerando uma redoma quase intransponível de percepções que vem colocando sérios desafios e dificuldades na jornada coletiva de enfrentamento à ampla e severa crise sanitária causada pelo novo coronavírus.

Conter essa onda de irracionalidade tem se mostrado uma tarefa muito difícil, pois a estratégia de seus artífices é perpetuar o questionamento generalizado, desqualificar tudo o que está estabelecido, e arrastar toda a sociedade para o nível de debilidade sobre o tema ao qual já estão habituados e ali produzir suficiente confusão mental, cizânia e desorganização em um contexto social caracterizado por ignorância estrutural.

A história mostra que essas forças obscurantistas foram devidamente neutralizadas em seus respectivos contextos sociais ao longo dos séculos. Na atualidade, porém, com o uso de mídias sociais disponíveis em larga escala, elas ganharam poderosos canais de disseminação/contaminação que vêm espalhando toxinas informacionais e produzindo um tipo de infecção generalizada na sociedade, para a qual ainda não temos ‘tratamento’ ou ‘vacina’.

Com a sociedade polarizada e hostil àqueles que pensam diferente, as pessoas preferem ignorar os fatos para se amparar no reforço afetivo interno de uma dessas comunidades de crenças. Sentindo-se pertencentes e podendo contar com o apoio de pessoas que pensam de forma semelhante, e somando o medo de serem hostilizadas fora dessa redoma, as pessoas jamais declinam e continuam rigidamente sustentando suas crenças, mesmo que as evidências em contrário se mostrem cada vez mais explícitas e exponham as fragilidades ou identifiquem a falsidade delas.

Este é um texto que não tem um final feliz, quando a constatação é que seguimos assolados por uma epidemia de fake news e desinformação que segue aprofundando a tragédia da epidemia biológica da covid. Que possamos encontrar uma vacina ou ao menos um tratamento eficaz o quanto antes.

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